The Last Door é bastante ambicioso em proposta e narrativa, formando uma antítese deliciosa com a primeira impressão que causa. Por ser um point ‘n click tradicional fundamentado em pixel art e visivelmente inspirado nas obras quintessenciais de H.P. Lovecraft e Edgar Allan Poe, tal primeira impressão pode soar descabida, até mesmo, por certa perspectiva, prepotente demais. Mas The Last Door se prova superior, sendo das mais impressionantes obras de horror dos últimos anos.
Fundado pelo Kickstater em 2012, com seu primeiro episódio lançado em março do ano seguinte, totalizando quatro para a primeira temporada (e com o primeiro episódio da segunda já disponível no site oficial da produtora!), cada nova empreitada via seu capítulo anterior tornar-se grátis, com o recém-lançado angariado ao valor que se quisesse pagar. Funcionou perfeitamente bem, e imagino que veremos um novo episódio de The Last Door de forma periódica por um bom tempo, já que a jornada do nobre cidadão londrino Jeremiah Devitt parece tomar caminhos cada vez mais conturbados.
Situado no final do século XIX e desenvolvido em diversas regiões da Europa, como Escócia, Sussex e outras regiões da Inglaterra, The Last Door dispara com um suicídio: o jogador, intercalado a falas de arrependimento e pesar, prepara seu próprio enforcamento num sótão. Corda, nó, cadeira e finalização, concluindo aquela que viria a se tornar a abertura para todos os fatídicos episódios desta densa e perturbadora primeira temporada. No papel de Devitt, amigo de infância de Anthony Beechworth, o aristocrata suicida do início, vamos descobrindo, pouco a pouco, o passado de ambos, atormentado por práticas obscuras, rituais alquímicos e artes profanas.
Escrevo estas linhas ao som da melancolicamente bela trilha sonora composta por Carlos Viola, espanhol fã de Bach, Chopin e Hans Zimmer (isso de acordo com seu perfil no ReverbNation) e membro participativo da também espanhola The Game Kitchen, desenvolvedora independente desta obra-prima do gótico e macabro. Partes que se encaixam, formando um todo de completude e uníssono, a aparente simplicidade de seu visual – que consegue, de maneira sublime, capturar momentos de extremo terror e tristeza – atinge tons precisos quando aliado aos efeitos sonoros cristalinos e aos piano, violino e violoncelo de Carlos.
(Sério, ouçam isso. É maravilhoso: https://www.youtube.com/watch?t=111&v=jdzvesrbJAE)
Após introdução um tanto quanto poética (peço desculpas caso pareça exagerado vez ou outra, me deixo levar pelo amor a causa), digo com bastante orgulho ter conseguido uma entrevista com Raúl Diez, um dos desenvolvedores responsáveis por The Last Door. E sugiro ler a entrevista com a trilha ao fundo. Formam duas belas metades de um inteiro lúgubre e belo.
Horror Database: The Last Door começa com um suicídio, o que deixa claro que cada episódio seria ultra impactante logo no início (o meu preferido sendo o do padre, no segundo episódio). Como foi feita a construção da narrativa no jogo? E também para as conclusões de cada parte.
Raúl Diez: O núcleo da história em “The Last Door” é a sua atmosfera envolvente. Nós decidimos que este seria o ponto principal quando começamos o desenvolvimento e a maioria de nossos recursos são direcionados para melhorar este aspecto do jogo, seja por meio de som ambiente, música, configurações, iluminação, cores ou, muito importante, a narrativa.
Assim, a narrativa foi construída em torno de histórias de terror clássicas e imagens relacionadas associadas a, especialmente, H.P. Lovecraft. O simples fato de Devitt progredir ao longo da história para descobrir uma verdade escondida e terrível, é uma clara referência a este autor. Então, como você pode perceber, a história foi escrita com grande influência de mestres da literatura de terror, os quais nossa equipe de criação é muito fã. Uma vez que eles escrevem a trama de um episódio, eles a revelam para o resto da equipe e, em seguida, fazem uma espécie de sessão de brainstorming para reforçar a escrita original e afiná-la!
Horror Database: Por que escolheram o formato do point ‘n click? Foram cogitados outros tipos de gameplay?
Raúl Diez: Em relação ao formato de point ‘n click, desde o começo pensamos que se adequa perfeitamente a aura do jogo. Temos que considerar que a história é contextualizada no final do século XIX, sendo assim, usar uma mecânica retrô como a do point ‘n click, como nos adventures das antigas, dá a “The Last Door” um grande toque vintage.
Sendo assim, honestamente, quando começamos a contextualizar o jogo e o conceito retrô ganhou terreno, a mecânica de point-and-click foi quase obrigatória e nem sequer pensei em qualquer outro tipo de mecânica.
Horror Database: The Last Door é assumidamente inspirado em contos de H.P. Lovecraft e Edgar Allan Poe e as homenagens permeiam a obra a todo instante. Qual sua história favorita de cada autor? E houve inspirações mais obscuras? Talvez um escritor espanhol fantástico?
Raúl Diez: Bem, essa é uma pergunta muito difícil de responder. A partir de Lovecraft, nós amamos obras como “The Survivor” ou “The Shuttered Room”, cujas presenças se estendem por toda obra. No caso de Edgar Allan Poe, ele também está presente no jogo de muitas maneiras e formas, quase como se invocássemos seu espírito. Spoilers à parte, em “The Last Door” há muitos flertes para seu trabalho, especialmente para um de seus poemas mais conhecidos, “O Corvo”, ou para o protagonista malfadado de “O Gato Preto”, especialmente no relato de como ele progressivamente perdeu sua sanidade.
Mas isso não é tudo, nós também tivemos inspiração de outros autores. Guy de Maupassant, Arthur Machen, Doyle, Jorge Luis Borges e August Derleth estão na lista dos leitmotifs de “The Last Door”.
Horror Database: O terror do jogo é construído de pouco em pouco e é admirável como a coisa funciona em pixel art. Houve dificuldade em retratar alguma parte da história com esse motor gráfico em específico?
Raúl Diez: Ao usar pixel art, não é fácil retratar uma história. Por outro lado, usando esta escolha estética, podemos maximizar a experiência aterrorizante que gostaríamos que o jogador sentisse. Na verdade, queríamos que nossa pixel art fosse o mais limpa de detalhes possível. E, acredite em mim, não é assim tão fácil representar um objeto, uma cena ou um personagem com a utilização de poucos pixels – na verdade, é um desafio real. Ao fazer isso, nós humildemente concluímos que conseguimos estimular a imaginação do jogador muito além de experiências normais, tentando mesclar a visão dos desenvolvedores ao plano de fundo e trazer a visão dos jogadores para o primeiro plano, tornando-a mais importante e alcançando assim uma experiência de jogo mais pessoal. Além disso, nós tentamos fazer com que nossa pixel art tivesse um estilo único quando comparada a outros estilos que foram feitos até agora.
Horror Database: A qualidade da escrita no jogo é fantástica, dando vida de forma singular a diversos personagens, como a freira que perdeu a razão em viver, o padre professor e os amigos de infância de Devitt, em especial Anthony. Há um quê pessoal em alguns desses personagens? São todo 100% ficção?
Raúl Diez: Não há toques pessoais na história ou personagens. Ao menos não de forma consciente. Mas há casos em que não é 100% ficção, pois realizamos um grande trabalho de documentação. Por muitas semanas reunimos informações e pesquisamos a literatura daquele período. Deparamo-nos com centenas de fotos antigas que mostravam prédios, móveis, paisagens assustadoras, etc e também procuramos jornais, onde líamos muito sobre assassinatos e histórias estranhas daquela época. Então, há um pedaço da realidade em nossos escritos.
Horror Database: A trilha sonora é algo de outro planeta, preciso ressaltar. Parece fazer parte da ambientação e cenários de forma natural. Você pode comentar um pouco sobre o processo de inspiração e composição?
Raúl Diez: A música é um aspecto extremamente importante do jogo e uma de suas principais características. A partir do zero, a abordagem inicial para o design de som do jogo não foi convencional. Queríamos que a música e o som tivessem um papel de destaque e, para isso, decidimos que a trilha sonora e enredo deveriam ser construídos em conjunto. Na verdade, algumas cenas são construídas sobre a música e não o contrário.
O que fazemos é trabalhar de mãos dadas com Carlos Viola, nosso grande compositor. Nós o informávamos de nossas ideias preliminares e, em seguida, ele nos sugeria aspectos e contornos diferentes de conceitos de música que geralmente se encaixam no jogo e/ou ao contrário. Após a “fase de ideias e surgimento de conceitos”, Carlos detinha absoluta liberdade artística e criativa para compor, com a única condição de ter de nos apresentar os esboços o mais cedo possível no desenvolvimento de cada capítulo, para que assim a equipe de produção pudesse ouvi-los enquanto terminavam de escrever a história e construir a jogabilidade. Assim, chegamos a uma fusão excelente entre música e história.
Horror Database: Há quebra-cabeças bem complicados em The Last Door (aquele de coletar resina do tronco com a pena para colar a máscara foi especialmente difícil de resolver). Como foi o processo de criação dos quebra-cabeças?
Raúl Diez: Inicialmente, design de quebra-cabeça foi um dos aspectos que nós consideramos mais difícil. Em primeiro lugar, porque não é fácil encontrar o equilíbrio perfeito entre dificuldade/facilidade e apelo/atratividade, ou seja, um quebra-cabeça deve ser espirituoso para surpreender o jogador, mas também difícil o suficiente para torná-lo um desafio divertido, mas não tanto que o jogador se canse e desista de resolvê-lo. Neste sentido, temos tido muitos feedbacks diferentes a cada capítulo. Às vezes, as pessoas se queixaram de que os quebra-cabeças eram fáceis e, noutros capítulos, protestaram que eram muito difíceis. Não é fácil acertar em cheio, de forma que na The Game Kitchen, abrimos a possibilidade de que usuários premium poderiam nos ajudar fornecendo feedback no processo de criação dos quebra-cabeças.
Horror Database: Além de literatura, quais outras fontes de inspiração estão em The Last Door? Que tipo de jogos você tem jogado ultimamente?
Raúl Diez: Além da literatura, quando chega a hora de falar sobre inspiração, temos que admitir que há muitas outras fontes, de muitas outras mídias. Jogos de vídeo game e cinema tem grande parte de culpa quando buscamos nossas “musas inspiradoras”. Na verdade, no lado dos maiores diretores de cinema, poderíamos citar David Lynch, Kubrick, Hitchcock, Bergman, Carpenter, Jodorowsky… Quem sabe, existem pequenos pedaços de todos eles dentro do jogo e não é fácil de dar todo crédito a apenas uma fonte.
Quando chega a hora de falar sobre os nossos jogos de vídeo game favoritos e mais inspiradores, a questão é ainda mais difícil de responder, mas, para a atmosfera, “Alone In The Dark” poderia ser apontado como uma influência enorme, pois é um dos nossos favoritos. Outro dos nossos jogos favoritos como fonte de inspiração poderiam ser: Scratches, Amnesia, Maniac Mansion ou Necronomicon: The Dawning of Darkness, mas não temos muito tempo ultimamente para jogar qualquer um deles!
Sobre o autor: Makson Lima é produtor e já trabalhou na PlayTV, onde era responsável pelos programas de cinema, Moviola e CinePlay, além de colaborar eventualmente com análises de filmes e jogos. Talvez você já tenha visto sua cara anêmica participando do programa Go!Game. De umas semanas para cá, tem escrito bobagens em seu Tumblr, e faz do twitter (@maksonlima) um exercício de catarse para com as escaras da humanidade. Tem uma admiração um tanto quanto doentia por Silent Hill, Siren e Shin Megami Tensei, além de considerar Chan-Wook Park e Takashi Miike os maiores diretores de cinema da atualidade. Procura experimentar absolutamente todas as desgraceiras do entretenimento eletrônico que surgem por aí (e do cinema também, e das HQs, e da literatura), e odeia falar sobre si mesmo na terceira pessoa.