The Evil Within (2014): O Retorno de Shinji Mikami ao “Mundo do Survival Horror”

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Makson Lima, muito prazer. Caso tenha adentrado estas linhas com conhecimento de causa, seja muito bem-vindo, do contrário, permita-me explicar o que irá encontrar por aqui: opiniões extremamente pessoais acerca de jogos de terror, sejam novos ou não, conhecidos ou não. Aliás, a ideia primordial é expor títulos obscuros, que podem ter passado despercebido até mesmo pelo mais ávido fã do gênero.

 

E Horror Database não haveria como começar de melhor maneira: dissecando The Evil Within, o retorno de Shinji Mikami ao gênero que ajudou a consolidar. E acredito ser este um daqueles sujeitos que dispensa apresentações, até mesmo porque estamos num site especializado, dedicado à sua maior criação, Resident Evil, portanto não me cabe subestimar você, ávido leitor, entusiasta de aberrações genéticas e demais deformidades biológicas.

 

Acredito também que grande parte dos leitores desta coluna ou já terminaram o objeto de análise (mas não, isto não é uma resenha) aqui posto, ou estão em vias de, ou até mesmo resolveram abandonar a empreitada lá pela metade. Sendo assim, a ideia não é, de forma convencional, levantar pontos positivos e negativos da obra como um todo, mas incitar debate acerca da trama, seus protagonistas, antagonistas e decisões criativas e de design.
E como diria um famoso serial killer, vamos por partes.

 

The Evil Within

Anunciado na edição de abril de 2012 da revista japonesa Famitsu, The Evil Within nasceu como Project Zwei, e seria a primeira produção da recém-fundada Tango Gameworks, nova produtora formada por Mikami assim que abandonara seus camaradas da Platinum Games. Apadrinhada pela abastada Bethesda, é ponto de debate o quanto de liberdade criativa Mikami e seu time de desenvolvimento tiveram com The Evil Within. Gosto de acreditar que liberdade total, dado gabarito do experiente game designer japonês.

 

Mas só em abril de 2013, um ano depois, foi revelado ao mundo o que diabos se tratava o misterioso Project Zwei, agora intitulado Psycho Break no Japão (o qual considero um nome muito mais apropriado para o jogo) e The Evil Within no restante do mundo (alusão mais do que evidente a Resident Evil). O trailer live action exibido gabava-se da parceria entre Tango e Bethesda e já elencava algumas das mais vis e ardilosas criaturas a habitarem Krimson City, cidade onde se desenvolve a trama: Laura, a monstruosidade com quatro braços e The Keeper, aquele brutamontes portando um martelo enorme e trazendo uma caixa de metal em sua cabeça.

E vamos relembrar este assustador curta-metragem, porque não dizer, trilhado pela maravilhosa Air on G String, do mestre da melodia, Johann Sebastian Bach.

 

 

Seria absolutamente fantástico caso esta fosse a abertura de The Evil Within, não? Dentre tantas e tantas homenagens que Mikami presta a Resident Evil com seu novo jogo, esta seria a mais impactante. Seria este sujeito de costas Ruben Victoriano? A mulher no retrato, Laura, ou sua mãe? Belo toque o do girassol em chamas, agora que tenho todas as reviravoltas em mente, não soou como um mero toque artístico-macabro.

 

Em diversas entrevistas internet afora, Mikami sempre salientou haver um teor psicológico bastante presente em The Evil Within, além de revelar seu desejo em retomar o terror que criara há mais de duas décadas, consolidando o Survial Horror como um subgênero nos videogames. E aqui cabe um parênteses: quando The Evil Within foi concebido por Mikami, o cenário dos jogos de terror era outro, com escassez de títulos e pouca disposição de grandes produtoras a tentativas e experimentalismos dentro do gênero. Havia uma crise de identidade de grandes franquias de terror nos consoles, como Silent Hill e o próprio Resident Evil. No entanto, entre o anúncio e o lançamento de The Evil Within, o cenário mudou radicalmente graças a intervenção de desenvolvedores independentes, provando com todas as letras ser possível criar jogos absurdamente assustadores com novas propostas, premissas e orçamento bastante modesto. Mais que isso, se provou então continuar havendo um grande público para tal.

 

Mikami chegou a mencionar numa dessas entrevistas, de forma bastante específica, a ideia de uma história desenrolada dentro da cabeça de um louco, coisa que seria inadmissível dentro das propostas e premissas da série Resident Evil. Logo, embarquei na jogatina já imaginando estar numa realidade distante da que conhecemos, e a aparição de Ruvik, a figura encapuzada que trucida policiais num piscar de olhos, foi minha prova real.

 

Acho justo traçar uma linha divisória aqui: os spoilers encontrados deste parágrafo para baixo serão massivos, portanto, caso ainda não tenha concluído o jogo todo e o queira fazê-lo de forma íntegra e austera, pare de ler agora. Mas volte depois, por favor. Cada opinião compartilhada acerca de tão bizarra trama acrescenta ao montante.

 

Sebastian Castellanos, marido, pai, detetive, alcoólatra e protagonista de The Evil Within acaba por se tornar alvo de Ruvik, uma tentativa de receptáculo para se ver livre das amarras mentais que ele mesmo criou. Apesar de estarmos nos controles do parrudo policial de Krimson City, é importante expor o fato desta ser a história de Ruben Victoriano, supra citado Ruvik (talvez um anagrama de nome e sobrenome? e brilhantemente dublado por Jackie Earle Haley, o Rorschach da adaptação para os cinemas de Watchmen) o cientista prodígio vítima de traição, sedento por vingança, coberto por queimaduras de terceiro grau e o real antagonista da coisa toda.

 

Quando Castellanos e sua equipe, composta por Joseph Oda e Juli Kidman, resolvem investigar um estranho chamado no Beacon Mental Hospital, a espiralada infernal tem início. Chegando ao local, encontram diversas viaturas abandonadas e, no saguão principal da clínica, um sem fim de corpos mutilados de forma selvagem. Apenas um sobrevivente, Doutor Marcelo Jimenez, figura central para entendimento da truncada, não linear e altamente interpretativa trama de The Evil Within.

 

The Evil Within

 

Há duas realidades postas em cheque durante as quinze e tantas (no meu caso, dezessete) horas de jogatina afora: Krimson City, controlada por Ruvik, e Beacon Mental Hospital, acessado por Seb via espelhos ou reflexos, tendo como anfitrião a enfermeira Tatiana Gutierrez – é o mesmo local do início, mas com um clima bastante distinto. Muita gente comparou as idas e vindas entre a cidade e o hospital à “sala do baú” de Resident Evil e não por menos, já que há aqui um momento de calmaria, uma música tranquila – Clair de Lune, em alusão ultra evidente a Moonlight Sonata de RE – e a cadeira de lobotomia, onde Seb abre mão de seu gel verde adquirido no “mundo imaginário”, digamos, para evoluir suas condições físicas e os atributos de suas armas. Ademais, variáveis interessantes: pôsteres de desaparecidos e jornais com manchetes de catástrofes em Krimson City. Pode parecer pouco, mas grande parte das interpretações aqui apresentadas tiram por base estes dois diferenciais.

 

Não é a toa que encontramos as insígnias de Sebastian sempre antes de adentrar o espelho – ou o outro lado, algumas camadas mais próximas da vida real. Nelas, e somente nelas, conhecemos mais sobre o passado do personagem, o que houve com sua esposa e também policial, Myra e sua filha, Lily. É por intermédio de texto que tomamos conhecimento de um Sebastian sem razão de existir, que perdera a única filha, e de apenas seis anos de idade, para um incêndio e vira a mulher definhar no processo de luto, procurando culpados para um suposto acidente. Acontece que Myra sempre esteve certa: os desaparecimentos periódicos ocorridos por toda cidade – criou-se até mesmo uma divisão especial da policial local para desvendar tal mistério – estão ligados à “morte” de Lily. Myra, por chegar perto da verdade, por chegar perto desta tal organização secreta – Mobius, da qual Jimenez, Kidman e Tatiana fazem parte – responsável pelos sequestros sem fiança, também desapareceu, e foi aí que Seb viu seu mundo ruir por completo, se entregando a bebida e vivendo em função do trabalho – tornando-se alvo fácil da organização.

 

Esta organização está atrelada ao hospital mental: todos os mal-assombrados que encontramos no jogo são pessoas capturadas, utilizadas como cobaia na criação de uma realidade alternativa coletiva, o sistema STEM, desenvolvido por Ruvik em parceria com Jimenez. As criaturas sempre apresentam maus tratos absurdos: arames farpados circundando suas cabeças e membros, pinos e grilhões nas juntas, dilacerações e mutilações das mais variadas formas; estamos lidando com tentativas de estabelecer este uníssono de sentimentos, pensamentos e vontades, afunilados num cérebro superior, o de Ruvik, tudo que restara do garoto prodígio após o rompimento da parceria entre Jimenez e o vilão.

 

Um parágrafo-parênteses para um link que esmiúça o design de personagens, monstros e conceito geral de cenários e ideias em The Evil Within, com comentários da artista por traz da obra, Ikumi Nakamura, persona de confiança de Mikami (e também a criadora dos mundos bizarros do primeiro Bayonetta!):

The Evil Within

 

Dentre tantas tentativas falhas de receptáculo dispensados por Mobius, há Leslie, o garoto problemático e protegido de Jimenez. Leslie está atrelado a Ruvik de forma elementar, pois foi e é o único capaz de resistir as ondas mentais latentes e poderosas emitidas pelo cérebro-mor. O jeito que age, caminha e repete as falas dos personagens que o acompanham reverbera o que se passa no lado de fora: assim como Oda, Castellanos e Jimenez, Leslie também encontra-se numa banheira cheia do líquido branco condutor hormonal, conectado via eletrodos ao cérebro de Ruvik. Note que Kidman não foi citada. Kidman é outra peça fundamental para o entendimento (ou tentativa de) do que diabos está acontecendo aqui.

 

Dentre infectados – acompanhamos o processo de desfalecimento de Oda e Castellanos narrativa adentro, com o primeiro chegando a sucumbir, mas conseguindo regressar a “condição humana” – Kidman nunca apresenta sequelas, muito pelo contrário, pois em determinado momento da trama, já nas ruas da cidade, rumo ao hospital do mundo imaginário, a “novata” chega a isolar Sebastian, o trancando num escritório. Repare em dois pontos: os olhos de Kidman são de um violeta sobrehumano, e outro mais importante ainda, quando Seb adquire consciência na banheira de Beacon, ele vê Kidman no controle de suas funções vitais, que, ao perceber sua recuperação, pede, discretamente, que feche os olhos. Kidman é muito mais do que aparenta ser, ela é a manipuladora do sistema, a responsável por oferecer recursos para que Sebastian consiga enfrentar as ondas de maldade criadas por Ruvik. Por mais absurdo que tal conjectura possa parecer, todas as armas, metralhadoras em SUVs militares, lança-mísseis surgindo em momentos miraculosos e demais “deus ex machinas” oferecidos por um roteiro “supostamente falho”, nada mais são que subsídios oferecidos por Kidman, meios para um fim, que é evitar que Ruvik consiga materializar-se no mundo real. Há também outra possibilidade para tais recursos: os personagens estão se adaptando ao meio em que se encontram, entendendo, de forma inconsciente, como a coisa toda funciona.

 

No entanto, minha mais absurda teoria sobre Kidman: a jovem de vinte e sete anos seria a filha de Castellanos, Lily, supostamente morta num incêndio acidental. Sim, eu sei, pode parecer absurdo, mas me permita tentar explicar: num dos pôsteres encontrados no hospital “real”, há rasuras e é difícil saber quem está sendo ali retratado, mas uma análise criteriosa indica ser Kidman (mas também pode ser Myra, o que faria minha teoria ruir!), ou seja, a mais nova recruta do grupo de Castellanos, que também perdeu a memória dentro do STEM, apesar de não ser afetada por suas influências, estando fora da máquina, interagindo de forma diferente com seus membros participantes. Diferentemente de outras cobaias adquiridas, Kidman foi treinada desde jovem para agir no STEM de forma diferenciada e, depois de atingir uma idade específica, poder se infiltrar na corporação da qual seu pai é parte vitalícia. Quando Ruvik declara para Sebastian saber tudo a seu respeito, me fez concluir o porquê de usar Kidman como isca em diversos momentos do jogo, disparando o inconsciente paterno existente em algum lugar dentro da espessa armadura criada em decorrência de anos de sofrimento e dor pela perda de seus grandes amores em vida, para então poder usar o detetive como receptáculo em potencial para escapar dos grilhões do STEM.

 

E uma última coisinha sobre Juli Kidman: a dona de sua voz é Jennifer Carpenter, famosa por ter interpretado Debra Morgan, a irmã do serial killer Dexter, do seriado da Showtime.
Outra ramificação do porque Sebastian, Oda e até Kidman estão no STEM: para evitar que Ruvik saia, destruindo a consciência que ainda existe ali, substituindo-a pela de Leslie, supostamente mais pacífica e “controlável”. O cuidado e preocupação de Jimenez com Leslie apontam para este caminho. E pensando por este lado, Mobius não sequestra cobaias a esmo, mas potenciais confrontadores dentro do subconsciente coletivo. A corporação teme Ruvik, a magnitude de seus poderes, o que ele seria capaz de fazer caso escapasse, e ao mesmo tempo tenta entender como continuar com os experimentos sem ter seu cérebro como âmago.

 

Entenda que Ruvik quer desesperadamente voltar para o mundo real e sua condição odiosa é o ponto menos debatível, digamos, da trama, pois lidamos com fatos: sua irmã, Laura, fora incendiada por moradores locais, Ruben enlouquecera e assassinara os próprios pais – sendo que seu pai o manteve isolado do mundo, e de sua própria mãe, no porão da mansão Victoriano, ainda em recuperação das queimaduras do incêndio no celeiro – e, após descobrir a traição de Jimenez, que roubara seus estudos e avanços no sistema STEM, fora morto pela organização, sendo utilizado como matéria-prima primordial na concretização dos estudos de toda sua vida.

 

Para que Ruvik consiga escapar para o mundo real, ele precisa de uma mente forte o suficiente para conseguir comportar a sua própria. A decepção por Sebastian não ser uma opção fez com que o psicopata concluísse só haver em Leslie real possibilidade: antes do confronto final com a forma mais monstruosa de Ruvik, o degenerado toca Leslie, que se transforma na substância asquerosa usada como meio condutor entre realidades. A partir daí o monstro já está solto: quando Sebastian toma consciência no mundo real, sai da banheira e destrói o cérebro central, Leslie é o único que não está em sua banheira. Quando Castellanos chega ao saguão do hospital e é surpreendido por uma equipe enorme de policiais de elite invadindo o local, ele só quer mesmo “respirar um pouco de ar real”, mas, no processo, vê, em meio a viaturas e demais membros da força, Leslie, caminhando debilmente por entre todos.

 

No mais, há aqui espaço para interpretação de desfecho, culminando em finais absurdamente distintos: seria Leslie apenas uma visão de Seb, ainda atordoado por tudo que passara desde então, ou será que Ruvik conseguiu mesmo escapar, já fazendo uso, mesmo que de forma branda, de seus poderes no mundo real? Ou então Sebastian nunca conseguiu fugir da máquina, já que a sala das banheiras encontra-se degenerada quando ele acorda e destrói o cérebro de Ruvik, diferentemente do momento que desperta por alguns segundos, segundos suficientes para repararmos num ambiente muito mais limpo e claro, além de distinguirmos de forma clara a figura de Tatiana – talvez este trecho, de uma perspectiva em primeira pessoa, com Kidman pedindo para que o detetive volte a dormir, seja o único ponto real de todo jogo; o ruído surdo que faz a cabeça de Sebastian doer quando este está por deixar o hospital também é indício dele ainda estar acoplado ao STEM.

 

The Evil Within

 

Sei que há ainda muito a debater sobre a trama intrincada de The Evil Within (explorei apenas uma ínfima parte do que nos é apresentado) e que muitas destas teorias cairão por terra quando o DLC protagonizado por Kidman der as caras. Sendo assim, convido você, fã do bizarro e que procura se aprofundar mais em tramas complexas e densas, a debater os pontos aqui apresentados. Considero tal abordagem muito mais interessante e construtiva àquela de apenas apontar problemas e apresentar críticas vazias. Para tal, sugiro usar como trilha sonora a música tema da nova criação demente de Shinji Mikami, Long Way Down – nome que faz total sentido com o todo – composta por Masafumi Takada (de diversas outras bizarrices deliciosas, a citar Killer 7 e God Hand, também de Mikami) e interpretada pelo grande pai do industrial moderno, Gary Numan:

 

 


 

Sobre o autor: Makson Lima é produtor e já trabalhou na PlayTV, onde era responsável pelos programas de cinema, Moviola e CinePlay, além de colaborar eventualmente com análises de filmes e jogos. Talvez você já tenha visto sua cara anêmica participando do programa Go!Game. De umas semanas para cá, tem escrito bobagens em seu Tumblr, e faz do twitter (@maksonlima) um exercício de catarse para com as escaras da humanidade. Tem uma admiração um tanto quanto doentia por Silent Hill, Siren e Shin Megami Tensei, além de considerar Chan-Wook Park e Takashi Miike os maiores diretores de cinema da atualidade. Procura experimentar absolutamente todas as desgraceiras do entretenimento eletrônico que surgem por aí (e do cinema também, e das HQs, e da literatura), e odeia falar sobre si mesmo na terceira pessoa.

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