Análise Especial | Resident Evil: O Hóspede Maldito (2002)

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Alice (Milla Jovovich) Resident Evil: O Hóspede Maldito, 2002

Apesar de Resident Evil: O Hóspede Maldito ser um filme meio antigo e já ter sido discutido e analisado diversas vezes por fãs e sites especializados, a verdade é que opiniões mudam, especialmente com o tempo e após rever o filme novamente, e a cada vez que se assiste algo, um novo detalhe passado despercebido anteriormente vem à tona, podendo mudar totalmente um ou outro aspecto do que já foi tanto analisado e debatido por anos.

Eu nunca fiz uma análise do filme, nunca coloquei minhas impressões sobre ele em um texto, já li e reli diversas análises, mas nunca reuni os meus pontos de vista, então, após rever o filme em alta definição, na sua edição em Blu-Ray, chegou a hora, finalmente.

“O Hóspede Maldito” é o primeiro filme live-action baseado nos jogos de Resident Evil. Após a Capcom ter recusado o script fraco de George Romero, o diretor da versão cinematográfica do jogo “Mortal Kombat”, Paul W.S. Anderson, teve seu roteiro aprovado para trazer Resident Evil às telas de cinema com um orçamento baixo e trama controversa, já que a notícia de que os personagens do jogo não estariam no filme e ele não seria uma cópia fiel dos jogos caiu como uma bomba entre os fãs.


A Relação entre Game e Filme

Apesar das altas críticas dos fãs, a respeito do caminho que a série de filmes seguiu, o roteiro de Paul W.S. Anderson foi aprovado pela Capcom e é supervisionado pela empresa desde este primeiro título. O responsável pela supervisão do filme é Yoshiki Okamoto, que é produtor executivo de diversos títulos da série Resident Evil, do primeiro jogo lançado em 1996 até Resident Evil CODE: Veronica. Temos, portanto, uma pessoa diretamente envolvida com os jogos também envolvida com os filmes.

Por mais que critiquem as diferenças do filme para o jogo e as diferentes atmosferas em que personagens originais da franquia tenham sido colocadas nos filmes, já foi dito pela Capcom que os filmes não fazem parte da cronologia oficial dos jogos, sendo, portanto, um universo paralelo, assim como são seus gibis e novelizações.

Em entrevista, o diretor e roteirista do filme, Paul Anderson, afirmou que queria fazer uma história totalmente nova, como se fosse um novo capítulo da saga Resident Evil, a ser exibida nos telões. Seu argumento foi o de que, se fizesse uma reprodução fiel da série, não teria a liberdade de fazer o que bem entendesse com os personagens. Com Jill Valentine, por exemplo, todos já saberiam, desde o início do filme, que ela sobreviveria no final, o que tiraria toda a graça e o ar de surpresa do filme. E assim, surgiram Alice e os personagens novos, que apesar de não fazerem parte da franquia de jogos, carregam alguns atributos dos personagens da série.

Todos os elementos de Resident Evil estão no filme: os zumbis, de vários tipos, desde os mais civis, funcionários da Colmeia, até os pesquisadores mortos pelo vírus; o T-Virus e seu antivírus; a explicação da Rainha Vermelha sobre o funcionamento do T-Virus nos organismos vivos é uma substituição aos “arquivos” encontrados nos jogos a serem lidos para que se possa entender a trama por trás do jogo e a solução dos enigmas encontrados pelos cenários; os mocinhos e vilões com objetivos semelhantes aos da série, o vilão com a ambição de ganhar dinheiro com o vírus e os mocinhos com o desejo de acabar com a Umbrella; a equipe especial da Umbrella, mostrada em Resident Evil 2, a mansão de ar tenebroso, o laboratório e demais ambientações dos jogos; e até mesmo as portas se abrindo e se fechando, o tempo todo. Há vários closes das portas dos cenários, abrindo ou fechando lentamente, dando suspense ao que está por vir, assim como nos jogos clássicos da série.

Alguns dos elementos inéditos dos filmes, inclusive, foram transportados para os jogos. Apesar da Rainha Vermelha ser, de alguma forma, inspirada em Alexia Ashford, mais tarde a Rainha Vermelha surgiu nas séries como o sistema de segurança da Umbrella, assim como nos filmes. É ela quem controla, inclusive, a arma biológica T-A.L.O.S. em Umbrella Chronicles. A famosa cena dos lasers do filme também foi parar nos jogos, e em dois deles: Resident Evil 4 e Umbrella Chronicles.

É preciso citar que existem algumas sutis diferenças no que diz respeito a estes elementos que saíram dos jogos e foram transportados para os filmes. A grande diferença é em relação à forma de contágio do T-Virus: enquanto no jogo é única e exclusivamente por contato direto (ou seja, o vírus entrando em contato com a mucosa ou com a corrente sanguínea), no filme ele pode ser transmitido tanto por contato direto quanto pelo ar, tornando-o, nas palavras da Rainha Vermelha, “um vírus quase impossível de ser destruído”. Outra diferença é em relação ao Licker do filme.

O roteiro foi fiel em fazer do Licker uma criatura proveniente do T-Virus, porém, nos primeiros jogos da série em que ele aparece, o Licker é um acidente causado pelo T-Virus, ou seja, se um zumbi não é necessariamente uma arma biológica por ser fruto de um vazamento viral, assim também são os Lickers, que nada mais são do que zumbis que sofrem nova exposição ao T-Virus. No filme, porém, ele é uma arma biológica em desenvolvimento pela Umbrella, e ao ingerir DNA humano, ele sofre uma nova mutação, tornando-se um caçador ainda mais ágil e feroz. Apesar destas diferenças, ainda assim temos os elementos do jogo presentes no filme, como o vírus e as criaturas criadas por ele.

O que temos neste mundo paralelo cinematográfico, portanto, é uma releitura livre dos jogos da série Resident Evil, um novo universo que leva o nome dos jogos, traz alguns de seus personagens, mas não faz parte da saga oficial criada pela Capcom.


Personagens Inéditos

Já que a história é totalmente inédita e, nas palavras do próprio Paul Anderson, poderia equivaler a um “novo jogo de Resident Evil”, os personagens também são novos, mas com várias similaridades com os dos jogos.

Começando pela protagonista, Alice Prospero, interpretada por Milla Jovovich, ela é uma soldado da Umbrella cuja função é proteger a fachada da Colméia, uma luxuosa mansão. No início do filme, Alice acorda após um desmaio durante o banho, e não se lembra de quem é e do que faz ali. Ela tem cicatrizes nos ombros por causa de seu ofício, e a aliança em seu dedo indica um casamento de fachada apenas para poder habitar a mansão sem despertar suspeitas. Durante o filme, ela vai tendo flashes de lembranças, como seu casamento com Spence, soldado como ela, e uma conversa com a jovem Lisa Addison a respeito de roubar o vírus da Umbrella. O filme é fiel ao fato de Alice ser uma desconhecida para a equipe especial da Umbrella e para os outros personagens, seja pelas razões que tiverem, já que seu nome não é citado em momento algum do filme, ela é apenas chamada de “soldado” no começo do filme.

A força especial da Umbrella tem a missão de desativar a Red Queen, o sistema de segurança da Colméia com inteligência artificial, que após o vírus ter entrado no sistema de ar condicionado do complexo, lacra todas as saídas e mata todos os funcionários que ali estavam, com o objetivo de conter um desastre viral em larga escala. A equipe é composta pelo Capitão One, o “point man” J.D. Salinas, o responsável pelos dados Chad Kaplan, a especialista em mecânica Rain Ocampo, uma médica e mais dois soldados. Os únicos que sobrevivem por mais tempo são Rain e Kaplan, que acabam também morrendo no final do filme.

Rain Ocampo, interpretada por Michelle Rodriguez, é uma mulher em meio a diversos homens, e isso exige que tenha uma personalidade mais forte e até um pouco mais masculinizada, talvez até pela longa convivência diária apenas com homens e poucas mulheres. Rain acaba tendo diversos trejeitos masculinos, não só no jeito de agir como durona, mas também ao falar, utilizando-se de palavras chulas e rudes. Porém, quando a situação fica mais crítica após ser mordida por um zumbi e a infecção tomar maiores proporções, ela mostra um lado mais suave e altruísta. Infelizmente, o antivírus já não faz efeito devido ao tempo de infecção e ela se transforma em um zumbi. A postura masculina de Rain é sempre criticada, mas é coerente com a sua condição de soldado em um ambiente em sua maioria masculino. Em certo momento, ela aparece limpando as unhas com a ponta de uma faca, mas não podemos esquecer que instantes atrás ela estava responsável por abrir uma porta com um maçarico. Rain é apenas uma mulher cuja personalidade durona se criou com o tempo e ambiente em que vive.

Logo no início do filme somos também apresentados ao misterioso Matthew Addison, que diz ser um policial recém-transferido para Raccoon City. Os traços físicos do rosto de Matt lembram bastante os de Chris Redfield, principalmente o cabelo, mas o que os diferencia é essencialmente a ocupação apenas. Enquanto Chris de fato é policial e membro dos S.T.A.R.S., Matt se passou por policial, com identidade falsa e tudo mais, apenas para adentrar na Colmeia. Lá dentro, ele tinha um contato, sua irmã Lisa Addison, que trabalhava na Colmeia para obter mais informações sobre o vírus. Foi Lisa quem conseguiu um informante que lhe prometera roubar o vírus em troca da exposição da companhia à mídia, o que levaria à destruição da Umbrella. Infelizmente, Lisa morre, e Matt a princípio acha que ela confiou na pessoa errada, tendo sido traída por seu informante.

Por fim, os destinos dos personagens se ligam com a figura misteriosa de Spence Parks, um homem encontrado no trem também sofrendo dos efeitos do gás liberado pela Red Queen, permanentemente desmemoriado. Assim como Alice, ele também usa uma aliança cuja inscrição dentro diz ser de “Propriedade da Corporação Umbrella”. No desenrolar da história, Alice e Spence recobram suas lembranças, e ele se revela como o responsável pela infecção na Colméia. Ao descobrir as verdadeiras intenções de Alice e Lisa, Spence, outro soldado da Umbrella e casado de fachada com Alice, decide roubar o vírus para vender no mercado negro. Após uma noite tórrida de amor, ele deixa à Alice um bilhete dizendo que, naquela noite, todos os sonhos dela iriam se tornar realidade. Quando a jovem soldado recusa seguir com Spence e seu plano, ele foge para o trem, onde é morto por um Licker enviado pela Red Queen.


Inspirações

A série de jogos Resident Evil é repleta de inspirações de filmes famosos, como A Noite dos Mortos Vivos, O Exterminador do Futuro, Matrix, Tubarão e Psicose. O universo cinematográfico criado por Paul Anderson não foge a esta regra e traz inspirações que vêm desde alguns destes filmes citados acima até contos infanto-juvenis.

A inspiração principal foi a história de “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll, que também deu o nome da protagonista. Além da personagem ser levada até uma base subterrânea a diversos metros da superfície, como se tivesse caído por um buraco sem fim, diversas cenas do filme fazem analogias com o conto de Alice, como as diversas cenas de decapitação e a vilã Rainha Vermelha, que se trata do supercomputador com inteligência artificial que mata todos os que estavam dentro da Colmeia para evitar um vazamento viral fora do complexo.

O jogo CODE: Veronica também traz referências ao conto de Carroll. Um dos inimigos tem o nome de Bandersnatch, que é um monstro feroz sob o comando da Rainha Vermelha. Alexia Ashford tem o codinome de “Rainha Vermelha” (Red Queen), e o seu símbolo é o de uma formiga-rainha vermelha. Assim como a Rainha Vermelha do conto, Alexia é cruel e acha que todos devem servir a ela, até mesmo seu irmão gêmeo, e ela elimina todos aqueles que se opõem ao seu caminho.

A série de jogos tem como inspiração principal o filme “A Noite dos Mortos Vivos”, de roteiro original criado por George A. Romero, o grande diretor de filmes de zumbi. Os filmes, é claro, não fugiriam à regra, e trazem uma clara homenagem ao universo de Romero. Em uma cena que mostra um jornal pendurado em algum lugar nas ruas destruídas de Raccoon City, a manchete principal é “The Dead Walk”, que em português quer dizer “Os mortos andam”. Esta é a mesma frase que aparece em um jornal do filme “Dia dos Mortos”, de Romero.


Referências ou Coincidências?

Abaixo estão listadas algumas cenas do filme contendo semelhanças com os jogos da série. Nem todas são confirmadas pelos roteiristas, podendo ser apenas coincidências. Ou não.

O close no olho de Alice seria uma referência aos dois primeiros títulos da série, cujos símbolos são olhos: o de Chris Redfield no primeiro e o de William Birkin transformado em monstro no segundo. Estas cenas dão a sensação de início de “capítulo” sendo contado na história do filme.

A cientista que morre afogada dentro da sala selada de pesquisa abre os olhos dentro da água como Alexia despertando em CODE: Veronica. O corte de cabelo das duas, inclusive, é bem semelhante.

Outra possível referência a Alexia Ashford seria o nome do trem de carga que é usado para a fuga final: ALEXI-5000.

A mansão que serve de fachada para o laboratório, o trem e vários ambientes do filme são iguais aos do jogo. O foco da mansão está em sua sala de jantar, e o interior do trem de carga é bem semelhante ao do jogo. Há também uma cena que mostra o sistema de esgotos da Colméia, referência ao cenário de Resident Evil 2. A mansão, os esgotos, o laboratório, o trem, o hospital no final do filme: são todos cenários retirados diretamente do jogo.

A relação entre irmãos de Matt e Lisa Addison pode ser uma referência a Chris e Claire. Matt é o protagonista masculino, tem traços físicos parecidos com os de Chris, e seu objetivo é investigar a Umbrella e expor suas pesquisas ilegais à mídia. Para isso, sua irmã se infiltra na Colméia, o que sugere a “invasão” também de Claire no laboratório de Paris, no início de CODE: Veronica.

Na cena em que Matt está sendo preso por Rain, Kaplan pesquisa em seu palmtop o nome Matthew Addison na lista de policiais do R.P.D.. O filme teve o cuidado de mostrar a influência da Umbrella até mesmo dentro da polícia, mostrando que eles tinham acesso aos nomes de todos os que ali trabalhavam.

Paul Anderson, na época das filmagens, chegou a explicar a razão de não fazer um filme idêntico ao primeiro jogo da série: não haveria surpresas e saberíamos quem morre e quem vive no final. De qualquer forma, ele diz em um dos especiais sobre o filme que Alice equivale a Jill Valentine no filme. Não é a Jill em si, mas sabemos que o peso que ela tem no filme é o mesmo da Jill no jogo.

Ao retornarem à sala dos lasers, onde estariam os corpos dos policiais mortos, não há mais nada. Um deles questiona onde estão os corpos, mas não há resposta, o que pode ser uma referência ao fato de os inimigos desaparecerem depois de serem mortos.

Paul Anderson também citou em um vídeo de bastidores que a Red Queen foi criada para dar informações que, no jogo, seriam fornecidas pelos files. Para não precisar ficar lendo textos na tela, é este computador com inteligência artificial que fornece aos personagens as informações necessárias sobre como eles devem matar os zumbis, como a infecção aconteceu e como funciona o T-Virus no corpo humano.

Os soldados da força especial da Umbrella são uma referência ao exército especial da corporação que aparece em Resident Evil 2, com HUNK como o único sobrevivente. Os trajes são idênticos.

O diretor e roteirista Paul Anderson relatou também que foram gravadas cenas em que o ângulo de câmera foi totalmente inspirado em cenas do jogo. Nestas cenas, o ângulo de câmera vem de cima, aumentando o suspense do que virá pela frente. O primeiro jogo tem várias cenas vistas de cima.

Além disto, Anderson também revelou que há incontáveis cenas no filme mostrando portas abrindo lentamente. Elas são uma referência às animações nos jogos das portas abrindo ao ir de uma sala para outra.

Na cena dos cachorros zumbis, o primeiro acaba entrando na sala para onde Alice fugiu pela janela, referência ao primeiro cachorro que quebra a janela do corredor da mansão, cena tida até hoje como uma das mais assustadoras do jogo entre os fãs.

O nome do vilão do filme é Spence, e o sobrenome do fundador da Umbrella é Spencer. Sabendo que a Capcom aprovou o roteiro de Anderson e dispensou o de Romero na época, é possível que a empresa tenha, de alguma forma, se envolvido na criação deste roteiro. O supervisor do filme, Yoshiki Okamoto, foi produtor executivo de vários títulos da série, como Resident Evil 1, Resident Evil 3 e CODE: Veronica. O filme, por coincidência, contém diversas cenas destes jogos.

A Red Queen, apesar de ser criação exclusiva dos filmes, e posteriormente incluída nos jogos, pode ter sido inspirada em Alexia Ashford. Na mansão particular dos irmãos Ashford, encontramos duas caixinhas de música em seus quartos. Nelas, há a inscrição: “Red Queen and Blue King return”, e o símbolo da caixinha de música no quarto de Alexia é uma formiga rainha vermelha. A representação holográfica da Red Queen no filme é de uma criança loura de cabelos longos, uma espécie de Alexia na sua fase criança, pouco antes de se usar como cobaia para seu próprio experimento.

O roteiro do filme mais uma vez foi cuidadoso na questão da influência da Umbrella na cidade ao mostrar o símbolo da empresa aparecendo várias vezes no hospital da cidade.

Após a cena que mostra Matt sendo levado para o programa Nemesis, aparece um close de um cientista de máscara, de olhos azuis. O ator é Jason Isaacs, o mesmo que narra a introdução do filme e que estava cotado para representar William Birkin na sequência. Aquele cientista de máscara, portanto, seria o próprio Birkin trabalhando no programa Nemesis no laboratório de Raccoon City.

No close que mostra a manchete de jornal dizendo que “os mortos andam” em homenagem a Romero, também é possível ver um artigo menor, cujo título é o mesmo de uma das manchetes de jornal mostradas na abertura do primeiro Resident Evil: “Horror em Raccoon City, more victims dead” (tradução: “horror em Raccoon City, mais vítimas mortas”).

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