P.T. causou impacto tão grande na memória recente dos videogames que seus tentáculos ardilosos, sobrenaturais e infanticidas tem alcançado (molestado?) a tudo e a todos, seja você fã ou não do gênero. Porém, não, o objetivo deste texto não é exumar um cadáver ainda quente (e passivo de necromancia?), mas sim expor um destes frutos putrefatos desta safra grotesca.
Layers of Fear ainda está em acesso antecipado no Steam, mas suas três horas e tantas de viagem alucinógena para os confins mais horrendos do cosmo e do infinito fazem frente a tantos outros já completos e entregues ao abate. Tive isso em mente enquanto caminhava pela mansão na qual a aventura se desenvolve. “Mas será que finalmente teria em mãos um Gone Home essencialmente de horror?”, pensava comigo mesmo enquanto vasculhava os primeiros quadros, abria as primeiras gavetas e tirava as primeiras fotos — de forma diegética, evidentemente, e estas ilustram o texto.
Um pintor famoso casado com uma musicista famosa. Pela mansão onde vivem, a fama é posta à mesa. Mas como estamos lidando com um jogo de horror, evidentemente que tragédia bate à porta. Mesa e porta, aliás, de uma qualidade gráfica surreal – quem dera eu ser tão abastando quanto para ter um PC parrudo o suficiente para rodar esta maravilha no ultra. De qualquer forma, o jogo sabe muito bem como construir momento, antecipar as ações do jogador e, primordial e primeiramente, induzir medo — e absolutamente nada disso tem relação com seus gráficos ou valores de produção.
Não sou casado, não tenho filhos e não vivi na metade do século passado. No entanto, todos os pontos tocados pelo roteiro de Layers of Fear me fizeram sentido. Tanto que preferi tentar expor nestas linhas o porquê de algo tão horroroso ser, quase que por consequência, tão atraente. Qual é o meu problema? Por que o bizarro tanto me atrai? A trágica história da esposa queimada, vítima de um incêndio que a tirou de seu ofício e de sua vida artística, e a espiralada infernal de seu marido a partir de então, expostas por artigos de jornal, folhas de diários e cartas recebidas, além da mutação absolutamente fantasmagórica da mansão onde tudo ocorreu, me foi absolutamente irresistível. Um artista tira inspiração de si próprio ou daquilo que o cerca? Da experiência vivida ou da compartilhada por outros? “O novo Leonardo” se tornou “piada, objeto de circo de horrores”. E por quê? Mas mais importante: por que eu, e tantas outras pessoas, são atraídas por tais obscenidades, tais negatividades?
“Death is but a layer”
Esta e tantas outras conversas entre a casa, com inscrições nas paredes, e eu mesmo, o jogador, aprisionado no corpo coxo e ardiloso do pintor. Acredito ser este meu invólucro. Minha busca era por itens, artefatos, elementos, fragrâncias, materiais que me permitissem concluir minha pintura definitiva. Ou continuar decaindo em mim mesmo, pai de aberrações a óleo em tela. “Babyface”, a pintura que me difamou, trazendo curiosos de todos os lugares do mundo e arrematando as críticas mais odiosas. Eu era o freakshow, eu era cada uma daquelas pinturas e eu, jogador, me tornei ele, o pintor.
De forma alguma me considero um sociopata. Muitíssimo pelo contrário: descobri, recentemente, ser alguém necessitado de outras pessoas. Eu preciso ver gente, estar com amigos. E tal autorreconhecimento, autodescobrimento, por mais que houvera forte objeção a princípio, me trouxe novas camadas de personalidade. Admito ser melhor daí. Ademais, é, por todas as contas e valores, uma necessidade. Os pensamentos nefastos que surgem com a rotina, com a falta, a solidão, com a carência e a abstinência (seja lá de qual vício), não me forçam a quebrar convencionalismos sociais, a procurar fugas submundanas. De forma alguma. O controle deste lado de trevas me faz quem sou. A coexistência com o positivismo interno, criado a tanto custo, contamina tanto quanto é contaminado, numa simbiose bizarra, tal qual dançar com alguém sem pernas.
Talvez assim pense a musicista? “Meu marido me vê como um monstro, então me permita bancar o papel”.
Mas ainda assim, a desgraça da trama de Layers of Fear me foi extremamente sedutora. O medo criado e potencializado por mim mesmo com luzes apagadas, isolamento e fones de ouvido relativamente poderosos, foi companheiro, diria. E me fez pensar no sucesso recente de Until Dawn e em minha surpresa, por consequência. Não se trata de um jogo necessariamente ruim (há partes patéticas, mas é válido no todo), mas foi o mais acessível no momento àqueles não tão dispostos a ir mais fundo na busca pelo bizarro desta indústria. Aparentemente, ninguém pôde escapar de Until Dawn e os efeitos foram interessantes. E se essas mesmas pessoas, seduzidas e entregues ao horror de fraldas de Until Dawn, experimentassem Layers of Fear. Qual seria o resultado de tal experimento? Não saberia responder.
“Nightmare fuel” na real acepção do termo, e nas palavras do próprio personagem em cartas para amigos agora distantes, agora alheios de mim. Basta observar as diversas pinturas espalhadas pela mansão para concluir o mesmo. Quem é quem? Não há separação. E mais: antes mesmo da loucura de seu protagonista abrir portas à viagens alucinógenas deslumbrantes de serem controladas — jogadas –, há o contato com o além. A mansão, um canalizador material. O pensamento constante de realidade e não realidade são mais que suficientes. Em outras palavras, me foi impossível abandonar o trem fantasma antes de seu desfecho, antes das portinholas se abrirem e seu condutor repleto de acnes informar que deveria descer do carrinho. Como poderia deitar para dormir sem concluir esta obra incompleta? A tela de “muito obrigado por jogar o acesso antecipado de Layers of Fear”, paradoxalmente simpática a tudo que me fora apresentado até então, arrancou sorriso do pavor. Tal qual a musicista sem controle de suas distensões musculares, “O Homem Que Ri”, esquizofrênico além dos 25 anos, sorriu de alegria, não de demência. E quem sou eu, quem é você, para apontar a real diferença entre um e outro?
Sobre o autor: Makson Lima é produtor e já trabalhou na PlayTV, onde era responsável pelos programas de cinema, Moviola e CinePlay, além de colaborar eventualmente com análises de filmes e jogos. Talvez você já tenha visto sua cara anêmica participando do programa Go!Game. De umas semanas para cá, tem escrito bobagens em seu Tumblr, e faz do twitter (@maksonlima) um exercício de catarse para com as escaras da humanidade. Tem uma admiração um tanto quanto doentia por Silent Hill, Siren e Shin Megami Tensei, além de considerar Chan-Wook Park e Takashi Miike os maiores diretores de cinema da atualidade. Procura experimentar absolutamente todas as desgraceiras do entretenimento eletrônico que surgem por aí (e do cinema também, e das HQs, e da literatura), e odeia falar sobre si mesmo na terceira pessoa.